“Na pele delas”: Jacy Gameiro alerta para o preconceito velado no meio acadêmico

Para Jacy, no ambiente acadêmico, o machismo se revela sutilmente: “De forma geral, mulheres dentro de cargos altos nas universidades são só 21,7%”(Foto: Leonardo Costa)

Uma certeza única encerra a conversa com Jacy: “Está melhorando muito. Mas ainda há muito a caminhar”. Para a pesquisadora, a percepção sobre ser uma mulher foi sentida muito mais nas vivências negativas do que nas positivas. Situações que começam a ser notadas nos primeiros contatos sociais, como na escola. Mas o que marca, de fato, essa percepção de maneira mais forte, são as situações percebidas na vida acadêmica e profissional. “Você começa a olhar para os dados, começa a olhar para o lado e ver que as outras mulheres sofrem a mesma coisa. Esse se descobrir mulher, vem muito mais pelo negativo. É muito menos por uma visão romântica e muito mais por: você é mulher e está sofrendo por ser mulher”, explica.

Por ser uma mulher com postura assertiva, Jacy conta que percebe que os olhares lançados a ela, muitas vezes, vêm, inevitavelmente, acompanhados de rótulos. “Aqui na universidade eu passei por situações não declaradas e, nesse sentido, é até pior. Há uma taxação das mulheres, que não acontece com os homens. Eu tenho uma personalidade que me faz falar quando eu tenho que falar. Professores já tiveram atitudes comigo, como levantar e bater a mão na mesa, ou ter posturas profissionais de questionar a minha competência. Eles não fariam isso com outros homens. Eu, como outras mulheres, me posiciono e aí sou taxada de briguenta, chata, mandona.”

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Mesmo no ambiente acadêmico, no qual Jacy considera que as mulheres costumam se sentir mais confortáveis, porque têm ganhos semelhantes ou têm, teoricamente, o mesmo acesso às mesmas oportunidades, o machismo se revela sutilmente.

“Se não estiver muito atenta, ele passa como algo normal. Acho também que eu percebi porque estava mais madura para isso. É uma construção. As mulheres hoje vão chegar na minha posição muito mais empoderadas, mais conscientes do que eu cheguei.”

A diferença fica marcada durante reuniões, quando um professor se dirige a uma professora de forma diferente, de maneira a privilegiar outros posicionamentos masculinos. “De forma geral, mulheres dentro de cargos altos nas universidades são só 21,7%. Na USP, só tivemos uma reitora até hoje. Não é bem essa igualdade que a gente vê, mesmo no tratamento cotidiano, ou quando ela pode ser implantada, de fato, na burocracia, na administração. Nos cargos de limpeza, quase todas são mulheres. Vamos percebendo que há alguma coisa se movendo, e essa mulher que não percebe isso, demora um tempo. Eu mesma demorei. Não é tão fácil assim.”

O despertar da consciência

Segundo Jacy, as respostas a essas situações vão mudando, conforme a mulher entende a diferença nas relações. Desse modo, há uma mediação. “‘Esse espaço é meu’. ‘Você não pode falar assim comigo’. A mulher começa não só a falar, mas também a ter atitudes que a colocam em posição de igualdade. Ela não quer ser superior. Mas não vai deixar as coisas passarem. E, além disso, vai fazer uma análise muito profunda sobre o que viveu e sobre o que não quer viver mais.” Em um primeiro momento, esse despertar gera um desequilíbrio, de acordo com a professora, mas prepara a mulher para não passar mais por situações em que se sente assediada e começa a ver com clareza a misoginia.

“Ao mesmo tempo, isso é muito legal. Porque é nessa hora que você começa a por a sororidade em prática. Quando você vê a outra passando a mesma coisa que você, não vai condenar imediatamente. Você vai pensar: ‘Peraí, deixa eu tentar avaliar o que ela passou.’ Quando acende para isso, você percebe que as coisas não são bem assim. Há uma diferença, que precisa ser superada.”

A superação dessa diferença para Jacy Gameiro só vai se dar, quando mais mulheres ocuparem cargos importantes, quando houver um debate mais forte sobre a presença e participação das mulheres na sociedade, na academia e na política. “Na Academia Brasileira de Ciências, na área de Engenharia, há apenas 8,9% de mulheres. Na área de Ciências da Vida, ficam entre 20% e 30%. É preciso falar, mostrar depoimentos, expor esses trabalhos. Cada vez que você dá voz, aumenta a participação.”

As acadêmicas são responsáveis pela assinatura de mais de 49% dos artigos de primeira autoria, então, Jacy lança a questão: “Porque nós ainda não temos as mesmas posições que deveríamos ter proporcionalmente?”. “Não estamos ganhando os melhores projetos, não estamos nas melhores produções. Apesar de sermos quase a maioria que assina artigos ou que frequenta e trabalha as universidades. Isso pode ser expandido para os lares comandados por mulheres. Então, por que ainda não somos maioria?” Por isso, segundo ela, não basta reconhecer a capacidade das mulheres. É preciso dar espaço para que elas exerçam suas competências. “Só mudamos quando a sociedade tomar coragem e colocar as mulheres nas principais posições.”

Na profissão e na vida

A pesquisadora conta que sentiu muito a questão de ser mulher por conta da maneira como são vistas e julgadas, tendo como referencial padrões de corpos e de comportamentos ditados por homens. “Uma mulher não pode beber, não pode se sentar assim, não pode se vestir assim. Quando você vira mãe, os comportamentos que se esperam quando você é … Ah, mas você vai sair sem seu filho? Como assim? Há uma cobrança excessiva com aparência, com comportamento, com a ideia de que temos sempre que ter um padrão que é ditado principalmente por homens, para podermos ser aceitas”.

Com a gravidez, essa cobrança ficou ainda maior.

“Ser mãe é aterrador, porque somos jogadas para outro campo. A produção profissional cai muito quando se é mãe (…), porque você é alijada, excluída de muitos processos. Em uma entrevista de emprego, ninguém pergunta para o pai quem vai ficar com o filho. Mas sempre perguntam isso para a mãe.”

“Tive duas filhas e ouvi: ‘nossa, como deve ser ruim ter filhas mulheres, você vai se tornar fornecedora.’ Isso fez com que eu me questionasse sobre qual é a visão que as pessoas têm de nós, dos nossos corpos, do uso da gente. Ouço piadinhas internas: ‘Vocês estão com a gente, mas deveriam estar lavando louças’. Cortamos ou levamos na brincadeira. Mas ainda ocorre de compararem a anatomia do cérebro de um homem e de uma mulher.” Ainda enfrentando um a um todos esses comentários, ela ainda pontua e reconhece que, do ponto de vista de uma mulher branca, privilegiada, a vivência de outras mulheres, como as negras e as periféricas pode ser ainda mais dificultada. Ela reitera que é fundamental, cada vez mais, amplificar a voz de cada uma delas.

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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