Não é sobre cartões-postais…
O Patrimônio Cultural embeleza as cidades, mas seu valor é muito maior do que mera paisagem
Quanto vale uma imagem no século 21? É certo que fotografias em lugares “instagramáveis” fazem sucesso instantâneo (embora fugaz) nas redes sociais. Geralmente, os panos de fundo incluem belas paisagens e edifícios históricos. Cheio de atrativos, o patrimônio cultural atrai grupos cada vez maiores de turistas ansiosos por tirar “aquela” foto. O Cristo Redentor no Rio de Janeiro, o quadro da Monalisa no Louvre em Paris, a Igreja de São Francisco na Pampulha, em Belo Horizonte, são exemplos inconfundíveis. Embora tenham forte apelo visual, todos os que visitaram lugares como estes sabem que a experiência estética extrapola a cena congelada numa fotografia. É inimaginável, sobretudo em fotografias amadoras, que a imagem seja capaz de capturar qualidades suficientes de um lugar e resumir, em alguns pixels, toda a informação sensorial disponível.
É evidente para o leitor que o termo “patrimônio” se refere a muito mais que belos cartões-postais. Desnecessário afirmar que imagens não carregam os cheiros, texturas e sabores dos pratos tradicionais, ou as cores volúveis e as paisagens sonoras dos espaços sagrados (tanto os construídos quanto os naturais). Quando nos referimos ao patrimônio cultural, há uma carga simbólica mista, que congrega valores históricos coletivos e técnico-científicos. Esses valores estão apoiados em materiais e técnicas de construção de edifícios históricos, festas ancestrais, paisagens naturais, entre outros. Resumidamente, podemos definir o patrimônio cultural como a seleção feita entre elementos pré-existentes (práticas tradicionais, edificações civis, templos, serras etc.) que sejam portadores de valores promotores da identidade de grupos sociais e que, portanto, mereçam ser preservados pela coletividade e passados adiante para as gerações futuras.
Por essa perspectiva, faria sentido limitar o patrimônio cultural a mero elemento de composição cênica? Essa questão já foi discutida de outras formas por interessados no assunto, com posicionamentos diversos. É comumente aplicada a alcunha pejorativa de “disneyficação” aos espaços construídos com o intuito de fingir elementos históricos sem autenticidade, com o interesse final de se criar cenários. Esses fingimentos, quando aplicados diretamente aos edifícios originais, é chamado de “falso histórico”. Outra prática contemporânea é o “fachadismo”, no qual substitui-se por completo a parte interna do imóvel histórico, mantendo-se apenas as fachadas originais. Essa prática é malvista por muitos teóricos, que a acusam de ser uma abordagem que vê o patrimônio cultural como commodity, e não como recurso a ser preservado para as futuras gerações. Por um lado, tais práticas podem se alinhar a uma noção contemporânea e abrangente de patrimônio cultural, onde se permite uma remodelação criativa (desde que respeitosa) dos remanescentes do passado. Por outro lado, há um profundo desalinhamento com linhas clássicas de pensamento, que entendem o patrimônio como algo antigo, autêntico, muitas vezes oculto, que deve ser preservado justamente por essas características singulares.
Se considerarmos que a imagem é veículo suficiente para a carga simbólica, por que deveríamos nos importar com outras das características que garantem a autenticidade e integridade dos bens patrimoniais? Por que preservar casas inteiras ao invés de garantir apenas suas fachadas? Por que não reconstruir monumentos em ruínas e garantir a atração turística juntamente com suas compensações econômicas? Por que preservar unidades geológicas inteiras e restringir os possíveis ganhos econômicos resultantes de extração mineral e ocupação do solo? No fim das contas, para que proteger o tal patrimônio cultural se podemos simplesmente replicar as características que nos interessam?
Ora, ao invés de tentar responder a essa pergunta, podemos lançar mão de um exercício da imaginação. Poderíamos estabelecer uma estratégia de levantamento amplo e detalhado de tudo aquilo que possua potencial patrimonial. De posse desse extenso inventário, basta criarmos um “metaverso” onde tudo (edifícios, obras de arte, serras e outros “patrimônios”) estejam representados virtualmente em grande nível de detalhes. Podemos até reproduzir apenas aquilo que nos interessa, sem espaço para ambiguidades e conflitos de ideias. Pronto! Esse tema já foi, inclusive, tratado exaustivamente no milênio passado (o filme MATRIX, por exemplo, é do fim dos anos 1990), e algumas das consequências destes procedimentos a ficção já nos ajudou a antever. Contudo, a informação estará lá, protegida por inúmeros backups e acessível a qualquer ser humano com acesso à rede global. Seremos, finalmente, uma sociedade feita de cartões-postais virtuais…
Por: Felipe C. V. Pires
Arquiteto, Urbanista e Engenheiro Civil – Especialista em Patrimônio Cultural Edificado