‘Ele não era número’, diz filha de músico vítima de Covid-19 em JF

Marcos e Bruna: Músico teve a filha, hoje com 31 anos, aos 25. (Foto: Acervo pessoal)

Minha mãe me teve muito novinha. Eu nasci em janeiro, e ela fez 19 anos em março. Quando nasci, ela estava indo fazer prova de vestibular, saiu até nos jornais, dizendo “vestibulando dá à luz”. Meu pai era um pouco mais velho que ela, mas novo também. Havia aquela coisa da família tradicional mineira de que sexo antes do casamento era algo absurdo, mas quando tudo se tranquilizou vim com muito amor. Meus pais se separaram quando eu tinha 2 anos. Não tenho lembrança de vê-los morando juntos. Desde que me entendo por gente, morava na casa dos meus avós, com minha mãe. Mas sempre ia para a casa do meu pai aos fins de semana. Quando ele ia tocar em barzinho, me levava junto. A gente brincava de música em casa. Ele sempre foi muito presente, apesar de a gente não morar juntos.

Quando nasci, meu pai já tinha banda. Quando era pequena, o Patrulha 66 lançou aquela versão de “Pensa em mim”, do Leandro & Leonardo. Meu pai até chegou a se mudar para o Rio de Janeiro. Minha mãe me contou que fiquei gaga, piscando o olho e comendo unha nessa época, porque ele estava morando fora. Ele sempre esteve envolvido com música. O que fez além disso foi dar aula, além de fazer shows. Tem muita gente que queria viver de música tocando, mas acaba dando aulas porque é uma forma de manter a renda. Meu pai, não. Ele tinha tanta vocação para tocar guitarra e violão quanto para ser professor. Ele amava. Trabalhava no Conservatório (Estadual de Música Haidée França Americano), e os alunos eram apaixonados por ele, porque ele dava seu máximo para passar o conhecimento e deixar as aulas divertidas. Como professor e como músico, ele era realizado.

Todas as lembranças de infância de Bruna com o pai envolvem a música, brincando com os instrumentos do integrante de Marquinho 66. (Foto: Acervo pessoal)

Desde minha adolescência, meu pai se tornou muito meu amigo. Meu avô era como um pai para mim e, quando ele faleceu, falei para o meu pai: “Pai, me desculpa, mas perdi um dos meus pais agora”. Ele entendeu. Era muito meu amigo, um confidente, muito objetivo nas conversas. E sempre muito humano no sentido de perceber o que eu sentia e saber dar o conselho certo. Quando perdi meu avô, fiquei dois anos em depressão sem perceber. Foi meu pai quem identificou e me tirou dessa situação. Começamos a tocar juntos e tivemos um contato mais estreito. Toda vez que eu precisava de uma opinião de alguém com quem pudesse contar, o procurava. Contava para ele coisas que tinha vergonha de contar para minhas melhores amigas por medo de elas me julgarem. Sempre desabafava com ele. Foi um grande amigo, um dos meus maiores amigos.

“Foi um grande amigo, um dos meus maiores amigos”, afirma Bruna. (Foto: Acervo pessoal)

Não consigo dizer que se não fosse filha dele teria me tornado musicista. Não sei contar quando comecei a cantar sem lembrar da minha infância, do começo com meu pai. Desde criança, a gente brincava e tocava mesmo sem saber, como uma musicalização infantil. Quando ele tocava em barzinho, acontecia de ensaiarmos uma música juntos e, depois de eu comer bastante batata-frita, Coca-Cola e sorvete, eu cantava com ele. Na pré-escola, ele dava aula de musicalização infantil nas turmas para ajudar a pagar o colégio. Na minha formatura pré-escolar, a pessoa que ia tocar piano não apareceu, e ele tocou, de improviso. A única pessoa que recebeu o anelzinho de formatura sem música fui eu, porque ele teve que sair do piano. Cantei na missa um tempo, e quando entrei para um cursinho pré-vestibular, entrei no projeto de música e poesia para cantar. Quando fui trabalhar no Pró-Música, fiz algumas aulas de instrumentos para descobrir do que gostava. Um dia, ensaiando na escola do meu pai, ele chegou e jogou: porque você não toca em barzinho? Foi assim que comecei profissionalmente, aos 19 anos. A música sempre esteve envolvida em nossa relação. Ele me influenciou desde neném até meu começo profissional. Ele ajudava emprestando um som, um violão, mas gostava de me ver caminhando com minhas próprias pernas.

Voz e violão: Marquinho acompanha, ao violão, a filha Bruna. (Foto: Acervo pessoal)

Recentemente ele estava trabalhando na Unincor, em Três Corações já há bastante tempo. Quando teve a questão da Lei 100, do estado (de Minas Gerais), ele saiu do Conservatório e ficou só com a universidade, que era de educação à distância. Ele trabalhava muito em casa e ia para lá uma vez por mês para os encontros presenciais. De vez em quando, ele tocava com a Rollback, no Clube Bom Pastor, no Edinho, mas se apresentar já não era cotidiano para ele. Em março, ele preparou várias coisas para fazer para comer em casa, me mandou os vídeos ensinando a fazer, mas desde então me falou que estava tendo febre. Foi tendo febre todos os dias, teve diarreia, que passou, mas a febre persistiu. Ele fez exames de sangue para detectar uma possível infecção. Na sexta-feira do dia 13 de março, liguei para ele quando cheguei do trabalho para saber como estava, e ele me disse que precisava ir para um hospital porque sentia muita dor. Peguei um táxi para a casa dele e o levei e para a UPA de São Pedro. Para nós, ele estava com uma infecção intestinal mais brava. Mas o internaram, pediram para eu ir embora e que iriam conduzir a situação.

Ele estava muito mal, hipotenso, e não havia leito. Saí preocupada de ele ficar na cadeira durante a noite toda. No dia seguinte, tinha a visita, entrei, e ele estava com um semblante melhor. A situação era aguardar um leito em um hospital para internação. Na segunda-feira, pela manhã, me ligaram contando que tinham conseguido uma vaga no HTO. Não sabíamos o que estava acontecendo. Lá fizeram tomografias e detectaram vários abscessos no fígado e no intestino. Num primeiro momento, acharam que era uma diverticulite que havia rompido e infeccionado tudo. Mas não era. Conseguimos a transferência dele para a Maternidade (e Hospital Therezinha de Jesus). Ele tomou antibiótico por muito tempo e fez drenagem de abscesso sem precisar de uma cirurgia. O médico aguardava a resposta do antibiótico para não fazer uma cirurgia com ele muito debilitado. Foi uma luta contra essa infecção. Ele chegou a ir para a UTI, ficou cinco dias. Depois voltou para o quarto, fez mais uma drenagem. Tudo estava dando certo, e o médico falou que o problema que levou ele ao hospital estava praticamente solucionado. Havia alguns abscessos ainda, e ele acreditava que o próprio corpo dele seria capaz de drenar sozinho.

Bruna Marlière: “Eu queria ele na minha vida por muito tempo ainda” (Foto: Acervo pessoal)

Na segunda-feira da semana passada (27 de abril), chegaram a falar que ele teria alta. O médico achou melhor deixá-lo mais um dia no hospital e fazer exames de bactérias para acertar o melhor antibiótico. Na terça-feira (28), a saturação de oxigênio começou a cair. Ele precisou de cateter de oxigênio no nariz e sentia falta de ar. Numa tomografia, identificaram que ele tinha um edema na pleura, e isso era muito comum em pessoas acamadas por muito tempo. Precisaria de um tratamento e que ele voltasse a se movimentar. Mas a situação passou a piorar. No sábado (2), à noite, acharam melhor levá-lo para a UTI. Por estar trabalhando, passei a evitar ir ao hospital e a encontrar meu esposo, que estava com ele, para não levar nada para meu pai. Nesse momento, contaram para nós que havia a suspeita de Covid-19, porque funcionários do hospital já estavam afastados após testarem positivo. Pediram para meu esposo voltar para casa e não ter contato com ninguém até que saísse o resultado dele. No domingo conversamos com a médica, e ela disse que tinha a possibilidade de entubação, mas que tentariam de tudo para não chegar a esse ponto. Na segunda-feira, 4, de manhã, eu estava em casa, e me ligaram dizendo que ele não resistiu a três paradas cardíacas.

A médica pediu para que tomássemos as precauções de Covid-19, apesar de não ter o resultado, com o caixão lacrado e sem velório. Optamos pela cremação. Fizemos uma pequena despedida só comigo, o Thiago (esposo), uma tia e a esposa dela. Voltamos para casa, para descansar e acordei na terça-feira, 5, com a notícia de que ele havia testado positivo. Começou, então, uma nova angústia, de podermos também estar infectados. Ontem fizemos o teste, e ficamos muito ansiosos, até que hoje (quarta-feira, dia 6) saiu o resultado, e testamos negativo. Passamos por muita coisa com a infecção abdominal dele. Ele estava vencendo. Em uma semana, veio o vírus e devastou tudo, e meu pai não existe mais. Eu queria ele na minha vida por muito tempo ainda. A gente vinha acompanhando as notícias, todo dia via os números, mas parecia ser muito distante da gente. A gente se sentia solidário à situação toda, mas parecia distante. Apesar de toda a nossa consciência, é outra coisa quando acontece com alguém próximo. Meu pai estava na estatística, mas não era um número. Era meu pai, o amor da minha vida. A gente tinha uma mania desde criança: ele falava “Não esquece que eu te amo” e eu respondia “Claro, você fala todo dia!”. E foi a última coisa que a gente falou diretamente, nessa chamada de vídeo. (Bruna mostra prints de celular com a conversa por vídeo e também uma conversa em texto, no dia 30 de abril. Marcos Marliere – Papis na inscrição do celular de Bruna – escreve: “Filha querida, mande uma caixa de bombom para eu dar para o filho do Igor [enfermeiro]. O Igor é muito gente boa. Obrigado. MM.” No minuto seguinte, Marcos acrescentou: “Não esquece que eu te amo”. E Bruna respondeu: “Claro! Você fala todo dia”. E finalizou com dois corações).

Troca da infância à vida adulta: Trecho da conversa entre pai e filha. (Reprodução)

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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