Situação dos ambulantes permanece sem solução em Juiz de Fora

A rotina é árdua e começa às 5h30. Rigorosamente no horário, o ambulante Anderson Luís se põe no cruzamento da Avenida Getúlio Vargas com a Rua Mister Moore. Ainda está amanhecendo e poucos pares de pernas são vistos. “É costume do corpo”, explica o vendedor. O concorrido ponto central foi regularizado em caráter provisório há 13 anos, enquadrando o camelô como um dos 434 ambulantes com algum tipo de licença no município, número que agrega os trabalhadores com regularização definitiva e aqueles que possuem liberação provisória.

Ao longo desse período, a situação dos camelôs pouco mudou, apesar de diversos projetos apresentados pelas diferentes gestões da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF). Agora, a atual Administração municipal entra para a conta de proponentes de análises para encerrar as demandas do setor. Entre os problemas mais comuns está a longa defasagem de licenciamento, sem emissão de licenças definitivas desde 2002 ou há quase duas décadas; a ultrapassada demarcação de pontos de vendas; e a concentração de vendedores em vias da região central, dificultando o fluxo de pedestres e de veículos, como ocorre na Avenida Getúlio Vargas e no Parque Halfeld.

Em todas as três gestões que precederam à atual, foram anunciados estudos e/ou soluções para a problemática dos ambulantes, seja para realocação dos trabalhadores que se concentram nas vias centrais ou para regularização dos camelôs. Outro aspecto comumente tratado pelos diversos gestores e secretários que analisaram o cenário refere-se ao combate às vendas de materiais sem nota fiscal e à atuação de vendedores sem o registro para tal.

A gestão do ex-prefeito Custódio Mattos (Cidadania), que, ainda em meados de 2009, planejou a criação de um “shopping popular” para abrigar alguns dos vendedores ambulantes do município. O então prefeito chegou a realizar o orçamento da possível construção, que foi avaliada em R$ 8 milhões. Àquela altura, a Prefeitura contabilizava 380 ambulantes regularizados. Em 2012, já no final da administração de Custódio, o Município chegou a aventar a possibilidade de retirar os camelôs da Avenida Getúlio Vargas para dar início a um projeto de “revitalização” da via, mas posteriormente recuou por falta de verba para as obras.

Na administração do ex-prefeito Bruno Siqueira (MDB), em 2013, o projeto do “camelódromo” foi engavetado. Em 2014, outra possibilidade foi aventada: o prefeito anunciou a intenção de desapropriar um terreno na confluência das ruas Batista de Oliveira, Espírito Santo e Braz Bernardino, no Centro. A área serviria para a criação de um shopping popular, para receber os ambulantes regularizados que atuam na região central, ao modelo da proposição anteriormente apresentada por Custódio Mattos. O projeto também contemplava um estacionamento rotativo pago e salas comerciais, a serem explorados por empresas privadas.

O projeto acabou caindo no esquecimento e, cerca de dois anos depois, a “falta de interesse da iniciativa privada” foi apontada como o motivo para o não andamento. A administração de Bruno deu lugar à gestão de Antônio Almas (PSDB), em 2018, quando mais de dois mil pedidos de emissão de licença para ambulantes já se acumulavam sem respostas nas gavetas da Administração municipal. Pouco mais de 200 ambulantes estavam atuando regularmente na cidade naquele momento.

O Governo de Antônio Almas não retomou os projetos das gestões anteriores ou tampouco apresentou novas possibilidades de solução. Em meados de julho de 2019, a tentativa de mudança foi pela repressão: uma operação foi deflagrada para coibir a presença de trabalhadores irregulares no Centro. Não deu certo. Poucos dias depois, a reportagem da Tribuna flagrou a movimentação normal dos ambulantes inicialmente dispersos.

Já nos últimos meses de 2020, o conflito entre os camelôs e a PJF se deu em função da remarcação dos pontos de vendas. Após manifestação dos trabalhadores, a Prefeitura recuou e anunciou o cancelamento da medida. A intenção anunciada pela gestão à época era a realização de nova análise sobre a alteração nos pontos, mas o período de Antônio Almas à frente do Executivo já tinha os dias contados, e nenhum resultado da suposta análise foi divulgado desde então.

O ambulante Anderson Luís ocupa um ponto na região central em caráter provisório há 13 anos. Desde os 7 anos, está nas ruas para trabalhar e ganhar a vida (Foto: Jéssica Pereira)

Demandas represadas

Depois de quase uma década sem solução, as demandas se multiplicaram. Os problemas ocorrem pela falta de revisão no regramento para o setor, segundo o presidente da Associação de Apoio aos Camelôs, Ambulantes e Artesãos de Juiz de Fora, Cláudio Souza. “Por não ter sido feito nada no Governo passado, a coisa vem vindo numa crescente. O caminho certo é ver quem realmente necessita de estar nas calçadas das cidades e fazer um amplo projeto para ver a situação de cada um”, argumenta.

Na visão da associação, é necessária uma nova regulamentação que atenda às necessidades da categoria. “Tem a necessidade de se fazer uma revitalização, uma nova padronização desses (ambulantes) que são legalizados. Tem que tentar regularizar parte do pessoal que trabalha na irregularidade, porque tem gente com mais de 20 anos (de trabalho) na irregularidade e que nunca conseguiu o licenciamento. Há muitos pedidos que não foram analisados, foram deixados a Deus dará”, critica.

O representante da categoria avalia que não é o momento para restaurar projetos de construção de um camelódromo, apesar de avaliar como inevitável a realocação dos ambulantes em um espaço reservado futuramente. “No momento, a visão da associação é que não é a hora de se fazer isso. É claro que o camelódromo e um shopping popular são realidade em uma cidade (grande), porque, para fazer o ordenamento, tem que haver isso. Mas, no momento, a gente tem que organizar o Centro da cidade primeiro. Fazer a nova legislação, fazer a regulamentação, organizar e padronizar a cidade”.

Pesquisa traça perfil para subsidiar planejamento

A atual gestão da PJF, liderada por Margarida Salomão (PT), iniciou os movimentos logo nos primeiros meses para planejar soluções para o problema. No último dia 25 de maio, com pouco menos de seis meses de administração, a Prefeitura oficializou a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para discutir a questão.

No decreto que instituiu o grupo, a justificativa apresentada foi de “planejar e organizar formato de licitação que atenda tais licenças de ambulantes, determinando locais, tipos, quantidades e outras questões relacionadas com o tema”. A análise tem a coordenação da Secretaria de Sustentabilidade em Meio Ambiente e Atividades Urbanas (Sesmaur), com a participação de representantes de outras oito pastas municipais e da Agência de Proteção e Defesa do Consumidor de Juiz de Fora (Procon-JF).

Três dias após a criação do GT, no dia 28 de maio, a PJF iniciou um levantamento de perfil de todos os ambulantes do município e feirantes da “Feira da Pechincha”, através de um cadastramento on-line para os trabalhadores regulares e irregulares. A pesquisa é vista pela Prefeitura como importante ferramenta para a elaboração de novas políticas para o setor, inclusive para o planejamento e a regulamentação da sonhada licitação dos pontos de vendas.

Em conversa com a Tribuna, a titular da Sesmaur, Aline Junqueira, adiantou dados preliminares da pesquisa e explicou a atuação da pasta junto ao setor. De acordo com ela, até segunda-feira (5), 559 ambulantes haviam participado do levantamento, já sendo possível notar aspectos importantes do perfil dos trabalhadores. A maior parte deles, 60%, estão compreendidos na faixa etária entre 40 e 50 anos. Também é mais frequente a atividade entre pessoas com renda abaixo de dois salários mínimos e entre pessoas que não são cadastradas como microempreendedores individuais, mas que gostariam de sê-lo.

Uma parcela de 78% dos respondentes começou a atuar como ambulante em função do desemprego ou pelo desejo de atuar como autônomo (39% para cada resposta). A concentração de trabalhadores pela região central do município foi outra característica apontada pelo levantamento. Àquela altura da pesquisa, cerca de 74% dos camelôs que responderam à pesquisa afirmaram atuar na Avenida Getúlio Vargas ou no Parque Halfeld.

PJF quer combater o distribuidor

O GT e o levantamento de perfil dos trabalhadores são as primeiras ações de um planejamento que visa o curto, o médio e o longo prazo, de acordo com a secretária Aline Junqueira. “Esse é um trabalho que está em construção. Ele está acompanhado de três pontas de ação: o combate ao distribuidor, geração de novas formas de trabalho e organização”, explica.

Do ponto de vista da fiscalização, a repressão ao vendedor é colocada em segundo plano, segundo Aline, preconizando o combate ao distribuidor. “A gente não tem só a pessoa que precisa (de trabalhar). Você tem grandes exploradores que distribuem mercadoria para que outros coloquem na rua. Se eles podem estocar duas toneladas e meia de alimentos, eles podem abrir uma loja regular, pagar imposto, empregar regularmente”, argumenta, citando a apreensão realizada pela Prefeitura em junho.

A geração de postos de trabalho é vista como essencial para oferecer alternativas ao trabalhador que, atualmente, atua de maneira irregular. Paralelamente, ocorrem as conversas com a população e as análises junto aos ambulantes para pensar saídas às antigas demandas. “Em momentos de crise econômica, aumenta-se o número de trabalhadores informais. Não adianta a gente agora, de novo, fazer uma solução paliativa. É curto, médio e longo prazo e, para que isso dê certo, a gente tem que fazer junto com a sociedade”, afirma a titular da Sesmaur.

Soluções definitivas serão possíveis apenas após a atual fase de análises, segundo Aline Junqueira, que envolvem reflexões sobre a regulamentação para as diferentes atividades do setor. “Só quando isso estiver de uma maneira organizada e transparente para que todo mundo tenha chance de participar, é que a gente pode partir para outra ação, que é a distribuição dos pontos e o combate (aos irregulares)”, projeta.

Ocupando o espaço público

Quem passa pelas ruas juiz-foranas, sobretudo as do Centro, dificilmente deixa de notar a presença dos camelôs. Seja nas calçadas, no tradicional Calçadão da Halfeld ou nas extremidades das vias, dividindo espaço com os pedestres e os veículos. A composição do cenário da região central, com os altos prédios, as lojas e as galerias, também tem a participação dos vendedores ambulantes. Tal ocupação do espaço público é um processo “sempre conflituoso”, de acordo com o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFJF, Frederico Braida. “O espaço público teoricamente é este lugar que pertence a todos; ora, é lugar que não pertence a ninguém”, reflete.

Lembrando os projetos apresentados nas últimas décadas, o pesquisador argumenta que a criação de um espaço para abrigar os vendedores ambulantes possui limitações impostas pelas características da atividade. O comércio dos camelôs, explica, muitas vezes se baseia na compra por impulso e depende do intenso fluxo de pessoas, de modo que a construção de um “shopping popular” teria que atender a esses critérios.

“Será um shopping que se parece com os outros? Não vai ser. Vai ser mais excluído, mais no cantinho, talvez num ponto que não tenha fluxo. E aí, não vai dar certo. Ou você vai alimentar aquele espaço só com um tipo específico de consumidor, aí não interessa. O que interessa é aquele consumidor que vai comprar um sapato em uma loja do Centro, passa (pelo ambulante) e compra alguma coisa no camelô”, pontua.

Braida defende uma “gestão coletiva”, precedida de diálogo com todas as partes interessadas, para que se chegue a uma solução. “O caminho são discussões democráticas e fundamentadas. Com especialistas que conhecem outras realidades, que podem mostrar outros casos (…). A ideia tem de partir de uma solução negociada”, conclui o pesquisador.

‘Antigamente, eram mais negros, mais sofredores’

O aumento no número de vendedores ambulantes constatado pela própria categoria e pela população é visto como natural para a especialista em finanças, controladoria e auditoria da Faculdade Estácio de Juiz de Fora, Mayanna Marinho. “A profissão torna-se uma saída na busca por uma receita que até então foi perdida, seja por uma perda de emprego ou até mesmo por uma queda em função de uma ação adversa”, analisa. “Se por um lado são geradores de renda para famílias, gerando consumo por parte da população, por outro, são também concorrentes diretos ou indiretos do comércio local”, complementa Mayanna.

Quem se acostumou a ocupar as ruas juiz-foranas, como o ambulante Anderson Luís, nota ainda a mudança no perfil de quem tem atuado como camelô. “A gente vê na rua pessoas que a gente nunca imaginou que ia ver”, conta. “Antigamente, eram mais negros, mais sofredores”, lembra ele, que fez das ruas seu local de sustento quando tinha apenas 7 anos e, hoje, já tem 48 anos de vivência no trabalho.

Anderson começou engraxando sapatos, chegou a vender balas na rodoviária e depois se estabeleceu com vendas de acessórios no Centro. Hoje, ele ganha a vida vendendo artigos do lar. “O meu pai separou da minha mãe quando eu tinha 7 anos (…). Como eu era o irmão mais velho, não tive outra opção a não ser ir para a rua para ajudar a minha mãe”, relata.

Nos poucos metros que seriam reservados apenas para as vendas de Anderson, ao menos outros três trabalhadores usufruem de algum espaço. “Se fosse há tempos atrás, eu não deixaria ficar ali, porque o ponto está na minha mão. Mas eu não posso brigar com uma pessoa que está defendendo o pão de cada dia”, justifica o camelô. A compreensão vem da experiência passada por ele mesmo. “Da rua, eu não saio. Só saio morto. Como é que eu vou arrumar um emprego de carteira assinada com 55 anos de idade?”, questiona. “Aqui eu pago o meu aluguel, pago minha água, pago minha luz. É o meu sustento”.

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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