Pesquisadores avaliam violência doméstica na pandemia em JF

Pesquisa realizada por professor do Departamento de Geociências da UFJF mostra que as vítimas de violência doméstica ficaram mais vulneráveis em Juiz de Fora, durante a pandemia de Covid-19. O trabalho analisou os primeiros semestres de 2018, 2019 e 2020 e concluiu que, na comparação entre os últimos dois anos, enquanto houve uma queda, em Juiz de Fora, de 15% nos registros oficiais de casos correlatos à violência doméstica, em todo o Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve aumento de 27% no número de denúncias ao 190 da Polícia Militar e ao Ligue 180 da Central de Atendimento à Mulher. Conforme a pesquisa, esse cenário é alusivo de como a situação das vítimas foi agravada, pois elas enfrentaram mais dificuldades para pedir ajuda ou mesmo para registrar ocorrências.

No entendimento do professor e geógrafo Wagner Barbosa Batella – que assina a pesquisa “Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 em Juiz de Fora – MG” – esse aumento das chamadas telefônicas no país envolvendo casos de violência contra a mulher mostra que houve um crescimento de pedidos de socorro por parte da vítima, que estava confinada, mas não podia sair de casa para fazer o registro do crime. Na visão dele, a pandemia colocou as mulheres em dupla posição de vulnerabilidade.

“Para explicar a queda nos números registrados e o aumento dos casos denunciados é preciso pensar na própria condição de pandemia que, na ausência de vacina e tendo como maneiras de lutar contra a Covid o uso de máscara e o distanciamento social, o ato de ficar em casa tornou-se um tormento para algumas pessoas, em função das relações conflituosos e da situação de violência. Então, para a mulher, sair de casa a fim de buscar ajuda significava um novo perigo, que é o risco de contaminação. Assim, ela se viu duplamente vulnerável”, ressalta o docente, que desenvolveu a pesquisa em parceria com os geógrafos Marcelo Aleixo Mascarenhas e Rafael de Castro Catão. Conforme o pesquisador, não foi possível, durante o estudo, levantar o número de denúncias de violência doméstica realizadas pelo telefone somente no município.

Para explicar o recuo de registros de violência doméstica em Juiz de Fora, no período analisado pela pesquisa, Batella ressalta que também é preciso lembrar que, de março a junho de 2020, a Casa da Mulher, que é principal órgão de referência em Juiz de Fora de acolhimento às vítimas de violência doméstica, permaneceu fechada em razão de medidas restritivas. “Acreditamos que esse período de fechamento do órgão pode ter impactado para a diminuição dos registros. Houve um aumento de denúncias no Brasil, mas houve um decréscimo de registros oficiais de casos em Juiz de Fora. Mas nem todas as categorias criminais diminuíram, pois em algumas houve aumento como o homicídio tentado que foi registrado um caso, em 2019, e dois, em 2020. O estupro de vulnerável foram 2 casos, em 2019, e 9, em 2020, o que nos leva a pensar que a condição de confinamento também potencializou essa situação”, destaca.

Violência doméstica tem cor e endereço

“Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Essa é uma máxima que, segundo Batella, deve ser esquecida, porque é preciso, sim, meter a colher. “Na violência doméstica, um dos aspectos mais cruéis é o silenciamento, porque acontece em uma esfera íntima, dentro das casas. Os dados que utilizamos mostram que a violência doméstica, em Juiz de Fora, tem cor e tem endereço, porque as vítimas são predominantemente mulheres pardas e negras, moradoras da periferia e com baixos indicadores educacionais, ou seja, estudaram pouco e moram em regiões já marcadas por outros tipos de carência, como infraestrutura e precárias condições de moradia e de acesso a bens e serviços”, pontua, o professor, acrescentando que são mulheres que já viviam em condições de vulnerabilidade, e a pandemia afetou suas condições socioeconômicas, agravando mais a situação de vulnerabilidade.

“Soma-se a isso a negligência do estado, a demora do pagamento do auxílio emergencial e o atraso para a vacinação. Esses fatores colocaram essas mulheres em uma situação de maior precariedade. Todavia, é importante destacar que várias pesquisas mostram que a violência doméstica não tem classe social, não tem cor, não tem região e envolve tabus como status e vergonha. Então, nossos dados traçam um perfil da vítima, mas existem outros segmentos que também podem ser acometidos pela violência doméstica.”

Nesse cenário, reflete o pesquisador, o fundamental no funcionamento de um órgão como a Casa da Mulher está na questão de concentrar uma infraestrutura destinada ao acolhimento dessas vítimas. “Com atendimento psicológico, jurídico, com mulheres que acolhem mulheres, o que é diferente de ter que procurar um órgão como uma delegacia. Tanto é que, com o fechamento da casa, neste contexto de pandemia, era esperado que houvesse impactos nos registros de casos de violência contra a mulher. É preciso destacar ainda a importância das campanhas de conscientização para que as mulheres se sintam encorajadas para a denúncia”, alerta.

Agressores estão sempre próximos

A pesquisa realizada pelos geógrafos teve foco nas vítimas, mas, conforme Wagner Barbosa Batella, escrutinando os dados dá para dizer que os autores de violência contra mulher são pessoas próximas das vítimas e, na maioria vezes, são os próprios companheiros. “Mas é importante lembrar que nessa categoria também estão os filhos, irmãos, avôs, pais e cunhados. Também é importante destacar que a violência doméstica não é algo da esfera só do casal, porque ela também acontece mesmo quando há a separação, e o ex-companheiro, por exemplo, não aceita essa situação”.

A violência nos bairros

A pesquisa “Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 em Juiz de Fora – MG” assinala que a cidade é a quarta de Minas Gerais em termos populacionais, mas ocupa o segundo lugar no estado em registros de casos de violência doméstica, perdendo apenas para Belo Horizonte.

Quanto aos bairros, o professor Wagner Barbosa Batella destaca que, no período analisado pelo estudo, o que ficou em primeiro lugar foi o Ipiranga, na Zona Sul. “Depois aparecem os bairros Centro, Santa Cruz, Santa Luzia e Linhares, que acumularam, em números absolutos, os maiores registros. Tirando Centro e Linhares, temos as zonas Sul e Norte neste cenário. É preciso destacar que a Zona Sul é uma região muito diversa e, nas duas regiões, os dados destacam bairros com carência de infraestrutura. Todavia, no caso de São Mateus, na Zona Sul, há um dado interessante, porque teve uma ligeira diminuição. Foram 37 casos, em 2019, e, 31, em 2020, a diferença é pequena, mas nos leva a entender que a agressão contra a mulher pode estar relacionada a ambientes onde a vida noturna é mais agitada, com maior circulação de jovens e há um consumo de bebida alcoólica mais elevado. No primeiro semestre de 2020, estava tudo fechado, então isso pode ter impactado no caso de São Mateus”, avalia.

Sobre a pesquisa

O professor Wagner Batella explica que a ideia para realização da pesquisa surgiu do advento da pandemia no Brasil e, particularmente, em Juiz de Fora. “Começamos a pensar como foi a incidência da violência doméstica e como foi a dinâmica espacial dessa violência. Nosso tópico inicial era de que a condição de confinamento iria agravar os registros (números) da incidência criminal correlata à violência doméstica. Ficamos sensibilizados com um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrando que houve um decréscimo dos casos registrados no Brasil, mas, por outro lado, apontava o aumento dos casos de feminicídios. Assim, decidimos pela pesquisa, olhando para essa realidade em Juiz de Fora”, afirma.

O trio de geógrafos foi buscar os tipos de crimes que mais dialogavam com a Lei Maria da Penha, uma vez que não existe a natureza criminal violência doméstica, mas um conjunto de tipologias criminais que pode ser aproximado ao que seja a violência doméstica. “Buscamos as tipologias ameaça, atrito verbal, estupro, estupro de vulnerável, homicídio tentado, homicídio consumado, lesão corporal, sequestro e cárcere privado e vias de fato/agressão tendo as mulheres como vítima. Mas vale lembrar que a Lei Maria da Penha coloca que a violência doméstica não é apenas aquilo que se atenta contra o corpo da pessoa, existe a violência psicológica, patrimonial, moral e não conseguimos contemplar essa diversidade porque a tipologia criminal não é tão diversa quanto essa compreensão”.

Subnotificação

Batella ressalta que, mesmo antes da pandemia, alguns tipos criminais já eram bem conhecidos pelo número elevado de subnotificações. “Neste universo da violência doméstica, há os crimes que são registrados, que representam parte desse problema, e outra parte fica silenciada, porque a violência doméstica é um tipo de crime envolvido em um grande tabu. Nossa sociedade é machista, patriarcal, e a mulher acaba se colocando no papel de dependente do homem. Para romper com isso não é fácil. Então, os dados que são trabalhados na pesquisa mostram apenas parte do problema, porque grande parte dessa incidência criminal não chega para os órgãos responsáveis de combate à violência doméstica, como a polícia, por exemplo”.

Apesar de todas as ocorrências computadas nos três semestres analisados terem apresentado queda de 15% nos registros, o pesquisador adverte que essas categorias criminais são marcadas pela subnotificação, o que significa que a realidade pode ser pior do que a registrada. Sobre a importância da pesquisa, ele avalia que o estudo torna-se conhecimento “para que os gestores possam decidir as melhores aplicações dos recursos que dispõem e é importante como informação para conscientizar a população, para prevenção, para mostrar como a denúncia pode ser feita e onde se deve buscar ajuda”, ressalta.

A pesquisa faz parte do livro “Crime e território: estudos e experiências em políticas de segurança pública”, disponível neste link.

Foto: Fernando Priamo

Postado originalmente por: Tribuna de Minas – Juiz de Fora

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